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Fragmentos da obra

o que um viajante precisa levar consigo:

o endereço de um amigo que mora em Berlim
folhas secas de sua árvore preferida
o itinerário preciso até a Citylights
moedas que falem a língua de vários lugares

um caderno em branco com capa de cor neutra
um coração
um chapéu para os dias frios
um chinelo para os dias de sol

frutas secas para saciar a fome
o barulho do vento marítimo uivando no córtex
a máquina fotográfica da memória
o atrito da areia ao sol escaldante entre seus dedos dos pés

mapas de desorientação dos sentidos
óculos escuros com aros de tartaruga
um tanto de coragem
menos de si mesmo

espaços vazios entre as dobras do cérebro

(Mapas Sutis, Editora Patuá, 2018)

Insuspeito

daquele amor
não deixei
vestígios
nem suspiros imprevistos
nem olhar de soslaio
palavras no livro

daquele amor
nenhum traço
mancha no sapato
perfume barato
rastros

daquele amor
só um chumaço
de dor
um gole rápido
um porre indisfarçado

se fosse amor
seria
um épico
um clássico
um ato dramático

melhor se fosse
um rapto da sensatez
um assalto à lucidez
um beijo roubado


QUARTO NÚMERO SEIS: A SANIDADE


O péssimo hábito de me apaixonar. Sabedoria: compreender o momento de tirar o coração de cena. Levá-lo à lavanderia para tirar as manchas dos erros: acreditar em mentiras, enveredar-se pelos olhos do amado, ficar esperando sozinha na sala de visitas. O amor é um defeito. Somos insanos. Nos entregamos irracionalmente ao prazer, nas noites de estrelas, juntos na cama. Nos deleitamos com os carinhos das mãos que passeiam avidamente pelas dobras e reentrâncias do corpo. Em meio à areia escura. Sons distantes de flautas nos enganam a cada esquina e embriagam os olhos e os ouvidos secos de poesia barata. Falsos risos, gargalhadas insanas que permeiam as noites alcoólicas. Me recordo ainda de um dia nebuloso em que andávamos pelo quarto à procura de alguma explicação para a agitação de nossas almas. No meio de um giro completo em volta da cama, você, com a insensatez de seu olhar masculino já turvo pelo desespero do cotidiano, pôde catar pelo chão palavras incrustadas em pequenas conchas.

(A Estalagem das Almas, Travessa dos Editores, 2016)


TRATADO SOBRE O SILÊNCIO

O silêncio dói muito mais na pele do inimigo que o grito.

Pousa, assim, cálido, como uma resposta sem pontuação.

Deita suave nas concavidades do ouvido.

Desconserta.

Hospeda pulgas atrás da orelha.

Arma afiada

Toque lancinante

Estratégia zen

Linguagem dos deuses da arte da guerra.

(A Mulher das Palavras, 2019)