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Fragmentos

A FOFA DO TERCEIRO ANDAR  

Primeira Parte

Baleia

1

Abril, sábado à noite, um ano esquisito. Ou melhor: quando tudo começou. Hoje resolvi escrever uma longa carta para você. Comecei um caderno agora. Uma espécie de diário. Não sei quando vou terminar. Preciso desabafar. Preciso falar, mas não quero críticas. Quero apenas que me ouça. Caderno não fala. Sorte minha. A primeira tarefa do dia foi comprá-lo, e optei logo por um de capa dura, duzentas páginas. Tenho certeza que você não vai me olhar de atravessado e nem vai rir de mim. Vou começar me apresentando. Olá, tenho 14 anos, um pouco menos de um metro e sessenta de altura, um pouco mais de setenta quilos. (Na verdade, muito mais de setenta.) Eu sei, estou no limite, mais um pouco e viro obesa. Fiz aniversário há poucas semanas, dia 19 de março. Meu nome é Ana, mais conhecida como a fofa do terceiro andar. Para começar, quero que saiba que odeio este adjetivo. Odeio todos os adjetivos. Na escola, aprendi que adjetivos atribuem qualidades aos substantivos, e fofa é um adjetivo diretamente ligado ao substantivo Ana. Ana sou eu, substantivo próprio, qualificado por outros tantos substantivos comuns, que ao se unirem ao substantivo próprio Ana, o qualificam e o elevam à categoria de adjetivo. Por exemplo: Ana bola, Ana tonelada, Ana baleia... Por isso estou treinando para pensar, escrever e falar sem adjetivos, e ver as coisas como elas eram no momento que surgiram. Pedra é só pedra. Pau é pau. Menina é menina. Mãe é mãe. Pai é pai. Pronto. Agora vou pensar assim. Colegas, por exemplo. São apenas colegas e ponto final. Se quiser, fique à vontade e dê a eles todas as qualidades que achar necessárias. Você vai começar a conhecê-los daqui a pouco e então me dirá se tenho ou não razão.

Ontem foi um dia ruim. Muito ruim. Saí de casa às sete da manhã para ir à escola. Durante a aula de Educação Física, eu me enrosquei nas minhas pernas e me esborrachei na quadra de esportes. Foi naquela insuportável aula de basquete. Odeio basquete. Não tenho fôlego para correr. Não consigo pular. O professor sabe disso, mas não dá chance, não me deixa ficar no banco ou fazer outra atividade. Acha que tenho que ser igual a todos. Aí eu vou. Tento. Estava jogando na posição de ala e me saindo bem. Pela primeira vez a bola estava em minhas mãos, e eu me aproximando do cesto... plac... plac... plac... próxima, muito próxima. Consegui driblar algumas adversárias, recuar, mudar de direção e avançar. A Giovana gritava para eu passar a bola, mas eu queria fazer aquela cesta. Quando fui dar o impulso para lançar, a Maria Clara se jogou sobre mim.

Não sei como aconteceu, mas ao tentar fazer um giro para trás com a bola, me atrapalhei e quando percebi estava no chão. E o professor, empinado, com seu peito de pombo, chacoalhando aqueles braços enormes e fortes, com a cara contraída, punhos fechados, em vez de marcar falta, gritava: “Está tudo bem, vamos continuar, foi só um tombo, vamos lá, levanta e reassume, Ana”.

Saí da quadra chorando. Poxa. Bati forte o joelho e aquele insensível nem para vir olhar se eu estava bem. Ficou lá, do outro lado da quadra, berrando que estava tudo bem, reassume, reassume. Mas não estava bem.

Abandonar o jogo foi a deixa para todos caírem na gozação.

Fui procurar a enfermeira. Ela limpou o ferimento e disse que foi só um arranhão. Caramba! Só o que ela sabia dizer era “acalme-se, está tudo bem, não foi nada!”. Não foi nada para ela! Meu joelho doía. Sorte que era a última aula. Aproveitei e fui embora.

Moro perto da escola. Dá para ir caminhando. Fui chorando pelo caminho. Coloquei o fone de ouvido e andei de cabeça baixa com os meninos do Hot Chip me consolando. Mais que a dor no joelho, era a dor que havia dentro de mim. Estava me sentindo sozinha.

No dia seguinte, um bochicho na sala de aula. Eles aproveitam para tirar sarro de tudo, e o motivo da gozação do dia era eu. Tudo porque levantei e fui embora. Garanto que se tivesse dado uns gritos irados, eles iam me respeitar. Não consegui.

Há pouco, minha mente se encarregou de repetir as cenas do tombo. As cenas do dia seguinte na sala de aula. O deboche dos meninos na quadra. A zoada das meninas do time contrário. O comentário daquele garoto insuportável, o Murilo, que passava de ouvido em ouvido feito telefone sem fio, “cara, nem te conto, a fofa do terceiro andar foi parar no chão”, “cara, nem te conto, a fofa do terceiro andar escorregou no sabão e quebrou o bocão”. Que raiva!

Eu sempre fui gorda. Característica da família. A avó, a tia, o pai, o irmão, a mãe. Todos. Gordos. A mãe faz regime para emagrecer. Uma família de ursos, dizia anos atrás. Agora não acha mais graça em fazer parte desta família de ursos e quer que eu também faça regime. Mas eu não gosto. É um tal de “não coma isso, não coma aquilo”.

Eu adoro tudo aquilo que eles chamam de “porcaria”. Devoro sacos de salgadinhos e quilos de hambúrguer com batata frita. Adoro bolo de chocolate com muito brigadeiro por cima. Coca-Cola. Fanta Uva. Caixas e mais caixas de Bis. Dane-se, se eu engordar mais, mais, mais. Que exploda!

Minha mãe conta que quando nasci era motivo de deleite para todos. Eles me olhavam e diziam: “Que bebê mais fofinho! Olha as bochechas dela! E que perninhas grossas... tão linda”. Com um aninho: “Parece uma boneca. Que gorduchinha. Bilu...bilu...bilu”. E lá vinha beliscão, com adjetivos, claro. Quando eu tinha 3 anos: “que gracinha!”. Aos 6: “Que menina forte!”. Quando fiz 8: “Está meio gordinha, mas o rosto é lindo”. Aos 12, 13, 14: “Fofa, balofa, baleia”.

Foi então que comecei a entender o uso e o significado do superlativo. Por exemplo, balofa, para quando se quer dizer exageradamente gorda. Aos 10 anos entendi o que é ironia: “Se ela saltar, a piscina esvazia”. Aos 12, já sabia o que era metáfora: “Gorda como uma baleia”. Confesso, não gostei.

Enquanto escrevo, minha gata me observa com olhos mansos e insiste em deitar sobre o caderno. Acaricio sua cabeça e ela rola na escrivaninha, fica com as patinhas para o ar. Canto, e ela responde com miados dengosos.

Branquinha,

gata branquinha, Mia.

Doce, meiga, charmosa,

ferina tigresa,

pequena felina

minha.

Mia.