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Fragmentos

Cadê você, Gertrud?

A contagem do tempo mudou. O calendário na parede é de anos passados. Todos os dias riscados. Para ele, um novo dia começa ao conferir o conteúdo da caixinha de remédios. O antidepressivo não tinha sido ingerido. A luz natural invadia com intimidade os pequenos cômodos. Os comprimidos ficaram acomodados na palma da mão por longo tempo. A escova de dentes foi largada as velhas revistas que ocupavam o sofá. Engoliu o remédio à seco.

Estranhamente passou a mover-se como um animal aferrolhado. Esbarrou nos móveis gastos e empoeirados.

Tropeçou no tapete.

Grunhiu “Cadê você?”

Rosnou “Cadê você?”

Rugiu “Cadê você, Gertrud?”

Acuado pelas fotografias pregadas na parede estancou e, entorpecido pelas imagens e abrandado pelas lembranças, aquietou-se.

Sentado na única poltrona desobstruída organizou e reorganizou a caixinha de remédios.

Como quem se diverte saboreando jujubas, ele ingeriu os remédios para a próstata, o coração e, claro, o antiácido. A luz começou a deixar espaço para as sombras da noite. A cintilação externa iluminava o cômodo compondo um estranho cenário.

O homem, num espasmo, atirou a caixinha de remédios contra a parede.

Embalado por ritmada canção imaginária, rodopiou entre as drágeas coloridas espalhadas pelo chão. Alegremente desvencilhou-se do roupão como que rompendo o casulo.

Olhou as fotografias como que mira um espelho.

Revirou a pilha de coisas que descansavam sobre o sofá e, com elegância de miss, vestiu um vestido de pedrarias. Deslizou nos braços um par de luvas de cetim e solenemente trocou os chinelos puídos por exageradas sandálias brilhantes. Ajeitou os cabelos, beliscou as bochechas para elas brilharem coloridas, sorriu.

Sedutora, mandou beijos para o nada, como se ali, entre as paredes do casebre, fãs aplaudissem. Encarando-se no vidro frio da vidraça proclamou: “Eu sou Gertrud. GERTRUD!”