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Fortuna Crítica

Palavras de crítica, por Arnaldo Franco Junior

 

MEMÓRIA E IDENTIDADE NO ROMANCE AS VIRTUDES DO TEMPO, DE INÊS DE OLIVEIRA RODRIGUES GONÇALVES 

As virtudes do tempo foi o único texto literário selecionado pela banca examinadora de professores do Departamento de Letras da Universidade Estadual de Maringá (UEM) que integrou o Projeto Livraria Paraná realizado pela Secretaria de Estado da Cultura em 2000 – banca da qual fiz parte, juntamente com as professoras Ms. Annie Rose dos Santos e Drª Marisa Corrêa Silva.

Antes de abordá-lo sob o prisma que dá título à minha comunicação, gostaria de destacar algumas das qualidades que o romance apresenta e que justificaram a escolha da banca durante e depois do trabalhoso processo de leitura e seleção dos originais que concorreram ao prêmio de publicação oferecido pelo Projeto Livraria Paraná. Dentre as virtudes do romance de Inês, destaco:

1) a capacidade de organizar uma trama narrativa coesa e coerente, articulando os segmentos de ação de modo fluente, seja para narrar o desenvolvimento do presente da ação dramática, ligada ao tema do exercício da memória e da reflexão sobre a passagem do tempo e seus múltiplos efeitos, seja para inserir no fluxo da ação presente fatos que remetem a fragmentos do vivido, detalhes guardados na memória cuja função, no romance, é fornecer à narradora-protagonista sabedoria e afeto para que possa prosseguir em sua própria vida, dando-lhe sentido ao integrar-se, pelo exercício da memória, a um rico tecido de laços familiares em que se destaca o papel discreto, tenaz, plural, tenaz e constante das mulheres;

2) a capacidade de construir personagens singularizadas, ou seja, personagens que têm vida interior suficiente para movimentarem-se, na narrativa, com força e expressividade próprias – o que produz a agradável sensação, ao longo da leitura, de estarmos presenciando e participando da própria vida de cada uma delas, ainda que estas vidas sejam todas filtradas pelo crivo do olhar perscrutador e sutilmente questionador da narradora, que controla, com sua voz o plano da enunciação no romance;

3) a capacidade de construir, a partir do desenvolvimento de uma ação dramática que enlaça personagens distintas com experiências diversas e, por vezes, conflitantes ou opostas, tanto um painel da vida das mulheres no século XX – já que Gláucia, a narradora vale-se da memória para flagrar tanto a experiência das avós como a das tias, a da mãe, a das irmãs e amigas, articulando-as com a sua própria experiência de mulher -, como um painel da própria vida nas pequenas e médias cidades que, com o passar do tempo, tornam-se maiores e dilaceram os antigos modos de vida, com seus comportamentos, hábitos, costumes, conceitos e preconceitos, eliminando alguns, reforçando outros, criando novos;

4) a capacidade de construir uma linguagem sedutora, que articula o formal e o coloquial de modo equilibrado, criando um efeito de naturalidade e, também um tom íntimo, que aproxima, por vezes, o narrar do contar-e-ouvir causos e histórias que marcam, ou marcavam, a experiência humana desde a infância no núcleo familiar e junto à vizinhança imediata;

5) a preocupação com a criação de um texto que deixa evidente o domínio da autora sobre os recursos e possibilidades da língua portuguesa, adequando às exigências da norma culta e às da linguagem coloquial uma escrita que não peca por artificialismo gramaticista nem por inadequações ou preconceitos na incorporação do coloquial pertinente à língua falada no plano da escrita literária – herança moderno-modernista que, no texto, se reafirma.

 

Escrita, memória e identidade

 

“Sei que essa dor vai diminuir: não é essa a virtuosa promessa do tempo?” –– essa pergunta, presente no meio do capítulo 1 do romance As virtudes do tempo, de Inês de Oliveira Rodrigues Gonçalves, intitulado “Tempo de Amar”, sintetiza, dadas as modulações de sentido que admite tanto no capítulo em que se insere como no próprio conjunto do romance, um dos motes a partir dos quais o texto se constitui: a afirmação e o questionamento simultâneos da idéia de que o tempo domestica a dor a ponto de, em alguns casos ou situações, extingui-la.

Constituindo-se num dos eixos a partir do qual se articulam, no texto, a narrativa e a reflexão sutilmente crítica do narrador sobre as ações que relata, esta pergunta integra-se a um dos aspectos fundamentais da obra: a relação entre memória e identidade, que, nesta comunicação, abordaremos apenas brevemente.

Saga de mulheres, As virtudes do tempo lança um olhar delicado, mas perspicaz e sutilmente crítico, à experiência feminina que, no século XX, sofreu transformações profundas a partir da inserção das mulheres no mercado de trabalho e das reivindicações e conquistas dos direitos daí decorrentes. Isso, sem ceder à panfletagem ou às análises apressadas.

As personagens femininas recebem, no romance, o destaque que faz com que, por meio delas, torne-se possível uma leitura do próprio cotidiano da vida em família e dos laços afetivos que, tramados entre o desejo, a amizade, o amor, o sexo, o medo, as pequenas e grandes ambições individuais, as futilidades, os projetos grandiosos, as rivalidades bobas ou terríveis, as ações, as decisões, as hesitações etc. mostram como o tempo inexoravelmente esculpe, em cada indivíduo, uma experiência única, intransferível e, no limite, quase incomunicável em sua riqueza e complexidade.

Uma metáfora possível para o romance é a da sala de espelhos. Não a sala de espelhos dos parques de diversões em que, graças às distorções, a imagem se deforma, produzindo o riso exatamente porque deforma, na relação estabelecida entre aquele que se vê refletido e sua imagem, a possibilidade de um reconhecimento. Refiro-me à sala de espelhos não distorsiva e, principalmente, não vinculada ao riso fácil, ao divertimento inconseqüente, à sala de espelhos capaz de fazer com que aquele que a percorra encontre a si mesmo quando diante de uma miríade de imagens não necessariamente idênticas à sua, mas produtos de um recorte, uma angulação inusitada ou inconveniente, enfim: uma leitura de sua imagem que o obriga a rever a auto-imagem que alimenta a respeito de si mesmo.

Essa sala de espelhos é constituída, no texto, pela própria memória da narradora, fonte de informações, detalhes, relatos, fatos, impressões, afetos etc. utilizados por ela para, simultaneamente, resgatar-se a si mesma na história das mulheres de sua família e das mulheres com quem conviveu, tendo o cuidado sutil e firme de, no entanto, não se comprometer com o estabelecimento de uma imagem acabada de si mesma.

A tessitura da narrativa, marcada por inúmeras idas e vindas entre passado e presente, entre o já vivido e a vivência do momento, comprova esse jogo permanente que, no romance, alimenta a trajetória realizada por Gláucia, a narradora. Mobilizada a partir da morte de sua mãe, Nina, Gláucia dá início a um relato por meio do qual resgata as histórias particulares das mulheres de sua família, a teia de relações que cada uma de tais vidas foi capaz de construir e, por que não?, em alguns casos, destruir, estabelecendo um permanente cotejo de tais vidas com a sua própria. Tal movimento é intenso, e são inúmeras as passagens que se realizam entre passado e presente, inúmeros os jogos de espelhamento que se estabelecem, no próprio plano da ação, entre as experiências das avós, tias, mães, irmãs, empregadas, vizinhas, amigas que constituem o círculo humano mais próximo da narradora.

Tomemos, para exemplificar, o seguinte trecho:

 

Tia Toninha não participou do frenesi em torno do meu enxoval. Era a melhor modista da cidade, duas moças a auxiliavam nas confecções. Entendia direitinho de que jeito eu queria as roupas, e quando a minissaia virou febre, vó Anita vociferava pela casa, dizendo que Toninha era mais doida que eu. Meu pai pediu que as barras fossem abaixadas, dois dedos, ao menos. Pedia então à tia Toninha que nas saias fizesse mais largos os cós, para dobrá-los tão logo dobrasse a esquina, deixando-as no comprimento que eu queria. Ela ia pouco à nossa causa por causa de vó Anita e proibia que ela fosse à sua, onde morava com Tia Melinha, que passava muito tempo no orfanato das meninas. Quando vó Anita ia à irmandade, tia Toninha passava conosco algumas horas, tomando café e proseando. Conviver com minha avó era difícil: desprovida de ternura, era adepta de surras para dobrar espíritos rebeldes, cuja lista eu encabeçava. Se encontrasse tia Toninha em casa dizia, ao passar pela irmã: “vou me lavar, sarna pega.”

Nos dias que antecederam meu casamento, na sala de costura a noite de núpcias era mencionada sempre que se ausentavam as moças solteiras. A julgar pelas conversas, elas iriam para o leito cabal de olhos cerrados, os dedos cruzados a golpear o peito, murmurando uma prece fortuita: “minha culpa, minha culpa, minha máxima culpa.” Ou talvez, “rogai por nós, pecadores, agora e na hora do nosso amor, amém.” Minha indiferença pelo assunto suscitou desconfianças que não mereceram apartes ou negativas. Eu pisava em brasas com a paixão de um hindu, fitando a platéia que esperava a exclamação de dor que me trairia. Esse ambiente carregado de austeridade, quando findava o ano de 1969, quem o criava era vó Anita, como se estivéssemos ainda no começo do século. Ela não via com bons olhos nada que eu fizesse: reprovava minhas roupas, as músicas que eu ouvia e discordava da minha ideologia política. Mesmo levando em conta o atraso natural da cidade interiorana, ela estava atrasada, em todos os sentidos. Comandava um grupo de mulheres, como se fora a rainha da colméia. Líder por natureza, cheia de energia, organizava bazares na paróquia, chás beneficentes, além de ser tesoureira. Não fazia parte das visitas aos velhos e pobres, porque não suportava pobres e a incoerência me levou muitas vezes a discutir com ela.

Algumas dessas mulheres bordavam meu enxoval e meu vestido. Ao ouvi-las na azáfama de formigas, olhava o feixe de luz no limiar da porta, esperando que me trouxessem a caixa de Pandora e receitas na ponta da língua, para todos os males. Minha mãe livrou-me vezes sem conta dos conselhos fastidiosos. Bordaram a colcha, a camisola, a fronha e até a calça do dia, que no entanto eram peças noturnas, frisavam elas. Gabei-lhes o primor e a perfeição dos pontos, resultado das agulhas impiedosas e pontiagudas, que feriram os panos delicados noite e dia, sem cessar. Meu elogio sincero foi traduzido por ironia, e como eu não tivesse intenção de me defender, ficou por isso mesmo. Vó Anita procurou-me, ralhou comigo.

–– A senhora não suporta negros e pobres. Eu não suporto beatas. Fim.

–– Menina, um dia essa sua língua vai ficar preta e dura, como um pedaço de pau e vai cair, nunca mais você vai falar, escuta o que estou te dizendo!

 

Este trecho é, creio, suficiente para demonstrar, nos limites desta comunicação, o jogo que se constitui, no romance, entre escrita, memória e identidade. É evidente, quando o analisamos mais detidamente, que a escrita, atividade a que se entrega Gláucia, a narradora, a partir da morte de sua mãe, é construída a partir do entrelaçamento entre a memória do vivido e a perquirição a respeito da própria identidade constituída no presente da experiência da dor.

De certo modo, a escrita é, também, o meio encontrado por Gláucia para barrar, ainda que ilusória e momentaneamente, o dilaceramento da dor da perda da mãe e a angústia em relação a si mesma, à sua identidade e, talvez, ao risco de fixar uma identidade, via escrita, para si mesma e para o outro. Tal tentativa, parcialmente feliz e parcialmente malograda, faz do jogo especular que continuamente a narradora estabelece entre as mulheres que revisita por meio da memória e a auto-imagem que tem de si mesma o motor de As virtudes do tempo. Note-se, no trecho acima citado, que Gláucia estabelece um permanente jogo de espelhamento com as mulheres que sua memória resgata, seja para projetar-se nas qualidades que nelas admira, caso da identificação com tia Toninha, a costureira competente e moderna que lhe costura minissaias, seja para negar qualquer identificação com o rigor e a dureza de vó Anita, de quem, no entanto, herda a tenacidade com que a enfrenta bem como a firmeza de ser fiel aos seus princípios e agir de acordo com eles.

Num plano aparentemente secundário, figuram as demais mulheres, personagens secundárias cuja função é manter vivo, matizando-o e enriquecendo-o, o permanente jogo identitário que se realiza entre Gláucia e as outras mulheres do romance. No trecho aqui destacado, o contraponto se estabelece entre a moça moderna e, sugestão ambígua e sutil do texto, não necessariamente virgem antes do casamento, e as beatas servis a vó Anita, representantes de uma acomodação aos ditames da tradição patriarcal, alienadas de si mesmas e de seus direitos e, por isso, beatas, vigilantes da moral e dos bons costumes, conselheiras fastidiosas.

Note-se que Gláucia, a narradora, opera o tempo todo em dois planos simultâneos: o do resgate do vivido por meio da memória, que afirma as ações no passado e a filtragem, via escrita, dos dados da memória. Estes dois planos são inseparáveis, e iluminam a sutileza da perspectiva crítica que o romance constrói a partir da voz de Gláucia. O trecho acima citado nos dá uma evidência de tal procedimento, pois, nele, é a escrita que, como quem nada quer e finge limitar-se ao relato do passado, à fidelidade ao vivido, avalia os dados resgatados para melhor questionar a identidade da própria protagonista no movimento mesmo em que se debruça, irônica, sobre a experiência alheia. Observe-se o trecho:

Ao ouvi-las na azáfama de formigas, olhava o feixe de luz no limiar da porta, esperando que me trouxessem a caixa de Pandora e receitas na ponta da língua, para todos os males. Minha mãe livrou-me vezes sem conta dos conselhos fastidiosos. Bordaram a colcha, a camisola, a fronha e até a calça do dia, que no entanto eram peças noturnas, frisavam elas. Gabei-lhes o primor e a perfeição dos pontos, resultado das agulhas impiedosas e pontiagudas, que feriram os panos delicados noite e dia, sem cessar. Meu elogio sincero foi traduzido por ironia, e como eu não tivesse intenção de me defender, ficou por isso mesmo.

 

A um olhar atento, não escapará o contraste que a narradora estabelece entre a beleza e a qualidade dos bordados do enxoval e do vestido de noiva, peças delicadas destinadas à sua noite de núpcias, e a insatisfação existencial das beatas bordadeiras que, sob o comando da avó, brandindo “agulhas impiedosas e pontiagudas, (...) feriram os panos delicados noite e dia, sem cessar”. Sutil, delicada, mas crítica e, no limite, cruel, a narradora registra uma sugestão-percepção sua de que há um deslocamento da pulsão vital e erótica que se realiza, para as bordadeiras, por meio de uma sublimação capaz de produzir belas peças de enxoval e um lindo vestido de noiva. Sublimação que se realiza pela via do trabalho feminino alienado, pelo esquecimento de si, pela transformação da frustração existencial em artes domésticas e, talvez, pela transmutação da potência vital em amargura e ressentimento cujo exemplo maior se concretiza em vó Anita, matriarca reprimida e repressora com quem Gláucia não se identifica e em quem não quer se espelhar.

Dessas sutilezas é feita, no romance, a tessitura da escrita com os fios da memória e das projeções especulares da investigação identitária de Gláucia, a narradora protagonista. Da leitura deste belo romance, veio-me à lembrança o poema “Gesso”, de Manuel Bandeira, com o qual encerro esta breve apreciação:

 

Gesso  (Manuel Bandeira)

Esta minha estatuazinha de gesso, quando nova

–– O gesso muito branco, as linhas muito puras, ––

Mal sugeria imagem de vida

(Embora a figura chorasse).

Há muitos anos tenho-a comigo.

O tempo envelheceu-a, carcomeu-a, manchou-a de pátina amarelo-suja.

Os meus olhos, de tanto a olharem,

Impregnaram-se da minha humanidade irônica de tísico.

Um dia, mão estúpida

Inadvertidamente a derrubou e partiu

Então ajoelhei com raiva, recolhi aqueles tristes fragmentos, recompus a figurinha que

[chorava.

E o tempo sobre as feridas escureceu ainda mais o sujo mordente da pátina...

Hoje este gessozinho comercial

É tocante e vive, e me faz agora refletir

Que só é verdadeiramente vivo o que já sofreu.

 

Referências

BANDEIRA, Manuel. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro, Aguilar, 1985, p. 193–194.

GONÇALVES, Inês de Oliveira Rodrigues. As virtudes do tempo. Curitiba: Secretaria de Estado da Cultura, 2002 (Coleção Livraria Paraná).